o sim e o não, o alfa e o ômega, a langue e a parole, o yin e o yang.

17 maio 2025

Maio Amarelo

O sul do país adora se achar europeu. Tem gente aqui que acha que ter sobrenome com mais consoante do que vogal automaticamente dá direito a ar de superioridade. Mas, embora o sulista viva arrotando civilização sobre o resto do Brasil, no trânsito, o Paraná é muito mais Nicarágua que Suécia.

Eu sempre fui muito fã de alta velocidade: sou daqueles malucos que acordam de madrugada pra ver 20 milionários correndo em círculos por duas horas em carros que atingem 300 km/h; já gastei muito dinheiro com jogo de corrida no vídeo-game e também pra correr de kart alugado. Mas, paradoxalmente, sempre fui um pregador da baixa velocidade no trânsito. Uma coisa é correr num circuito com barreira de proteção, ambulância e protocolo de segurança. Outra é pilotar uma máquina de uma tonelada numa rua com pedestre, bicicleta e motoristas que nem sabem o que estão fazendo.

Mesmo que você seja o Ayrton Senna, você pode em algum momento se distrair ou teu carro pode falhar; ou, mesmo que não seja culpa sua, uma criança pode invadir a pista ou um ciclista pode se desequilibrar. A diferença entre uma buzinada e um trauma que você vai carregar pro resto da sua vida é a velocidade em que você está dirigindo. A 30 você xinga. A 80 você mata. O corpo humano não aguenta uma pancada de um veículo de uma tonelada nessa velocidade.

Só para termos uma noção: sabe aqueles testes de colisão de carro feito com dummies iguais aos do Big Brother? A maioria daqueles acidentes são feitos a 64 km/h. 

Nas estatísticas, entre as as principais causas de acidentes estão desatenção/distração, falhas mecânicas, desobediência à sinalização e a infraestrutura viária – além de, claro, o excesso de velocidade. Mas eu argumento que todos esses acidentes poderiam ser evitados se a velocidade estivesse mais baixa. Alguém na sua frente poderia até ter errado e furado o sinal vermelho, mas se você estivesse numa velocidade mais baixa, você teria tempo de frear e o máximo que teríamos seriam lanternas quebradas e dor de cabeça com seguro e oficinas mecânicas – mas nenhum morto.

Isso não quer dizer, é claro, que a gente tem que andar a 30 km/h o tempo todo. O que estou propondo é que usemos velocidades compatíveis. No centro da cidade, a gente não precisa andar a mais de 40; na rodovia que atravessa a zona urbana, a gente anda a 80; e na rodovia, livre, pavimentada, duplicada, a gente viaja a 110. Não coincidentemente são esses os números que aparecem nas placas de velocidade máxima permitida nessas vias.

Até porque a diferença entre viajar a 110 e a 150 nem é tão grande quanto parece. Uma viagem de Curitiba a Ponta Grossa, de 117 km, demora 64 minutos se viajamos a 110 por hora (isso, claro, se fosse possível manter essa velocidade constante durante toda a viagem (mas vamos fingir que dá)); se formos a 150, essa mesma viagem demoraria 47 minutos. Ou seja, estaríamos nos expondo a muito mais riscos e economizaríamos míseros 17 minutos.

Então, se a gente quer realmente ser uma Europa, com discussão de primeiro mundo (e não só desculpa pra ser racista), a gente precisa repensar o quanto mortes no trânsito são toleráveis. A meta de reduzir mortes pela metade até 2030 não é uma ideia ruim. Mas bom mesmo seria agir como se nenhuma morte fosse aceitável

17 abril 2025

Autoria em Tempos de IA: Quem Escreveu Isso — Eu ou o Robô?

No texto anterior, eu queria incluir uma charge que vi há alguns anos: várias pessoas em cima de banquinhos, cada uma com um megafone na mão, todas falando, nenhuma ouvindo, e a legenda dizia "Twitter". Procurei a imagem no Google, revirei o Pinterest, até tentei aqueles sites obscuros de arquivos de memes antigos — nada. Desesperado, pedi ajuda ao Gemini. Ele não busca imagens, claro (afinal, não é um cachorro farejador de pixels), mas sugeriu recriá-la. E essa foi a ilustração que acabou no post.


E aqui começa o primeiro ato dessa comédia: uma discussão sobre autoria que nem Sartre resolveria. Porque, veja bem, o desenho original não saiu dos "dedos" digitais da IA — alguém, em algum lugar, teve essa ideia genial primeiro. Eu não paguei direitos autorais, não dei os créditos (afinal, quem merece o mérito aqui?), mas usei o conceito como se fosse meu. E agora tenho uma imagem nova, brilhando no blog, como se tivesse surgido por geração espontânea. Mas então: quem é o verdadeiro autor? O cara que pensou na metáfora visual? O algoritmo que a regurgitou? Ou eu, que dei a ordem como um imperador romano dizendo "Façam-me um meme"?


Os robôs de IA ainda não criam sozinhos — ou melhor, criam, mas como aquela criança que junta palavras aleatórias e diz que escreveu um poema. Sempre tem um humano por trás, descrevendo o que quer, ajustando prompts como quem sussurra "mais para a esquerda... não, sua direita!" para um pintor cego. Com essa charge, foi exatamente isso. O Gemini não captou a metáfora, mesmo depois de eu explicar 15 vezes, em três línguas, com emojis e diagramas. Sua resposta foi digna de um atendente de telemarketing: "Entendo sua frustração, mas sou um modelo de linguagem. Consigo discorrer sobre metáforas, mas não posso materializá-las em imagens. Que tal um haiku sobre solidão digital?"


E agora, o plot twist: este texto que você lê foi gerado por uma IA (o DeepSeek, no caso). Mas — e isso é importante — não foi um "Ctrl+C, Ctrl+V" descarado. Eu o escrevi primeiro, na raça, com erros de português e tudo. Depois, pedi ao robô que o aprimorasse, como quem manda um ensaio para um editor mal-humorado. Antes disso, ainda ordenei que ele lesse meus outros posts como um ator que estuda um personagem. O resultado? Cabe a vocês, leitores detectivescos, decidir se passou no teste de Turing ou se, em algum momento, o texto escorregou e caiu no vale da uncanny valley.


P.S.: Para fechar com chave de ironia, pedi ao ChatGPT que gerasse a imagem deste post. O resultado? Um robô segurando um megafone... que, por sua vez, solta balõezinhos de fala cheios de código binário. Meta o suficiente para você?


[N.doHumano: ironicamente, a imagem do ChatGPT ficou melhor do que imagem do Gemini -- mas pro texto anterior. A ideia que o DeepSeek deu pra esse ficou melhor, mas ele não cria imagens]

16 abril 2025

Nem li nem lerei


O Facebook já foi a arena onde as pessoas discutiam os mais variados temas. Diferente de fóruns, onde você procura tópicos de seu interesse, no Facebook o algoritmo é quem decide com que você vai gastar seu tempo — seja esse textão ou o nascimento do filho de uma antiga colega de colégio ou um vídeo de lontras interagindo com capivaras. O problema é que hoje, não tem mais ninguém por lá.

Já reclamei por aqui a ideia de que a gente é dominado por esse formato de arena das redes sociais e que se a gente não publica nelas a gente nem sequer é visto. Já em 2015 eu já dizia que ninguém visitava blogs. Por isso eu publicava no blogspot e deixava o link no Facebook  e ninguém clicava. Hoje, o seu substituto, o Instagram, já nem deixa postar links (até deixa, mas tem validade de 24 horas num story). E o substituto do substituto, o TikTok, pede que a gente poste vídeos  e minha habilidade de escrever redações dissertativas de até 15 linhas se perde.

A internet 2.0 trazia a ideia de que a internet era feita de pessoas (gente burra, como dizia um aí (e que eles iam dominar o mundo, porque são muitos — como dizia algum outro)), mas logo a gente descobriu que a internet 2.0 seria dominada pelas big techs e a praça pública passou a ser privada e cheia de propaganda. Fiz um levantamento rápido, e das 30 primeiras publicações que apareceram no meu feed do feice, 13 eram de páginas que eu não sigo ou publicações pagas. E, com isso eu recebo publicações sobre o Neymar, sendo que eu nem acompanho futebol, e não fico sabendo que a tal antiga colega do colégio já teve, inclusive, seu segundo filho.

Tudo isso pra dizer que vou tentar voltar a escrever minha coluna de opinião. Sei que já prometi isso antes, mas quero tentar exercitar minha escrita e deixar registrado o processo de pensamento que me fez chegar até aqui. Optei por manter no blogspot em vez de outras redes novas especializadas em textos (como o Medium), porque, já que de qualquer forma precisamos clicar num link (no facebook ou no instagram ou em qualquer nova rede que vier a substituí-las), que seja para o mesmo lugar que eu já publico a tanto tempo — desde 2007, no caso. Se for pra ser ignorado, que seja num lugar que eu escolhi. E se você está lendo isso, parabéns: escapou do feed por 0,3 segundos.


03 outubro 2016

Quem a democracia representativa representa?

No episódio de hoje, aprendemos que a população não está satisfeita com a democracia representativa. Em muitas cidades, geral decidiu não votar em ninguém. Só pra falar de capitais, em 8 delas o número de eleitores que decidiu não votar em nenhum deles foi maior do que o número de votos no candidato mais votado. No Rio de Janeiro, o número de nulos, brancos e abstenções dá quase o mesmo tanto que o número de votos nos TRÊS candidatos mais votados.
No episódio de hoje, aprendemos também que, mesmo que mais da metade dos eleitores votem nulo, a eleição NÃO É anulada e novas eleições NÃO SÃO CONVOCADAS em 45 dias. 


É fato que esse modelo de democracia representativa já não representa os interesses de boa parte da população. Mas é fato também que as greves e os movimentos de rua já não têm mais a mesma força que um dia tiveram; por um lado, pela falta de adesão, mas, mais importante, pela falta de credibilidade. O maior movimento de rua dos últimos anos, em junho de 2013, não levou a nenhuma mudança real na política brasileira; os movimentos de rua que tentaram parar o impeachment da Dilma não surtiram nenhum efeito. E os movimentos que derrubaram a Dilma só surtiram efeito porque era a grande mídia que movia as marionetes: só esperar os movimentos de rua em 2017 contra o Temer.

O que tem acontecido é que “uma parcela mais politizada da população” está desacreditada da nossa democracia e decidiu não votar em ninguém. O problema é que as regras de nossas eleições simplesmente ignoram essas pessoas. Assim, o voto das “pessoas menos politizadas”, no fim das contas, vale mais do que valeriam. Na ânsia de se posicionar contra o fluxo, essa galera acaba fortalecendo o fluxo. 

De maneira alguma me posiciono contra o voto nulo ou a abstenção; se o sistema não nos representa, é justo querer boicotá-lo. A minha crítica em relação à negação do sistema. Porque se opor ao sistema é o mesmo que dizer que não faz diferença ser governado por um partido que se diz progressista contra ter no governo um partido ultraconservador.


Comparemos a eleição com uma doença terminal. [a comparação é péssima, eu sei.] Você pode escolher entre fazer uma cirurgia que pode te matar no processo e que pode não curar totalmente a doença ou tentar um tratamento com medicamentos em um spá nas montanhas. Nenhum deles é garantido; nenhum deles garante a cura; a probabilidade de morrer é alta em todo caso. A escolha está em decidir qual deles é o menos doloroso. Ou dá pra simplesmente se entupir de analgésicos e não lutar contra a doença. Você que escolhe.

Um sistema ideal era um sistema que você não tivesse doença. O ideal é lutar pra que ninguém mais adoeça. Concordo com tudo isso. Mas agora que a doença está aí, que as opções são essas, o que nos cabe fazer?

Debato os métodos que tem se adotado para a revolução, mas acredito de verdade que a única forma de mudar alguma coisa é a gente implodir o sistema e mudar as regras do jogo. Mas enquanto isso não acontece, o que temos é essa democracia lixo que a gente tem. E a gente não pode dizer que o que os governantes fazem não nos diz respeito.

19 abril 2016

E o impeachment, ein?

Para entender as pedaladas fiscais:

Era fim de mês e acabou faltando dinheiro pra comprar comida. Sem falar nada, o marido foi lá e usou o cartão de crédito. Na semana seguinte veio a conta e ele já tinha o dinheiro e pagou tudo direitinho.

E aí a esposa descobriu que ele fez isso sem consultá-la.

Ela deve pedir o divórcio?

Aí ela pergunta pros filhos: "pedalada fiscal deve ser considerado crime de responsabilidade?".

impítximã
E eles respondem:
- pelo Tobi, o cachorro, eu voto sim!
- por causa da janela do meu quarto, eu voto sim!
- em homenagem aquele cara que bateu no papai aquela vez até quebrar os dentes e entortar a mandíbula, eu voto sim!

O outro filho disse que o pai merece um puxão de orelha e que ele deve avisar sempre que for sair do combinado e que o divórcio deve ser pedido se ele fizer alguma coisa mais grave.

As outras crianças alegaram que ele só disse isso porque o pai dá pão com mortadela pra ele.

05 abril 2016

o Facebook e a nossa visão de mundo

Não diria que é da natureza humana; diria, talvez, que é da natureza das sociedades humanas ou, pelo menos, das sociedades ditas modernas. A gente tende a procurar informações que complementem aquilo que a gente já pensa; a gente sempre tenta andar com pessoas que concordam com a gente. O Facebook sabe disso e nos alimenta só com notícias que a gente quer ouvir – ou, no mínimo, aquilo que o Facebook quer que a gente queira ouvir.

Estudos apontam que 96% dos jovens brasileiros acessam a internet todos os dias; e que, desses, cerca de 80% acessam as famigeradas redes sociais. Isso quer dizer que a maior parte da juventude brasileira se comunica pelo feice ou pelo zapzap. O que, por um lado, é ótimo, já que cada vez mais a galera está se informando por meios alternativos; e, por outro lado, é péssimo, já que cada vez mais a galera está se informando por meios alternativos.

Por razões que vale a pena discutir, as pessoas, que até bem pouco tempo enchiam a boca pra falar que não gostavam de política, hoje estão discutindo política. As discussões ainda estão bastante superficiais e enviesadas, mas pelo menos elas acontecem. O problema é a falta de criticidade das pessoas; as pessoas acreditam em tudo que o william boner diz e em tudo que os memes dizem.

(Paweł Kuczyński)
E, graças a essa mesma internet, um outro grupo de pessoas se interessou por política e teve a paciência de pesquisar e ir atrás e tentar entender como funcionam as coisas e comparou visões contraditórias e procurou formular sua própria opinião. 

Só que pra essa geração o Facebook ainda é o principal meio de comunicação; ou, no mínimo, um ponto de partida. As pessoas podem até curtir páginas de conteúdo bastante variado e ser amigo de gente de todos os naipes; mas o Facebook, com uma lógica que só ele entende, decide o que aparece no seu feed de notícias. Assim, os pontos de vista que a gente vê no feed são cada vez mais parecidos com os nossos.

E, pra essa geração que ainda está na adolescência da internet, isso só pode ser ruim. Em tempos de extremismos e gente inflamada, ouvir apenas aquilo que nos agrada nos leva a extremizar ainda mais nossas posições. Quando eu apenas ouço a respeito de A, o B vai se tornando cada vez mais caricato e irreal; o A passa a ser a verdade e o B, por ser o inimigo, vai tomando as feições de tudo aquilo que a gente tem medo ou não quer que aconteça.

Disso é fácil chegar na conclusão de que petralhas adoram o demônio e que coxinhas querem a volta da escravidão. 

Embora você provavelmente só tenha chegado nesse texto justamente devido ao Facebook, o ideal seria que a gente saísse de lá e se comunicasse por meios mais democráticos. Mas, pensando no uso que a gente tem feito dele – ler as manchetes, curtir as fotos e ir pra próxima postagem –, acho que não nos livramos dele tão cedo.

20 março 2016

E o Lula, ein?

Nos últimos dias, milhões de brasileiros foram às ruas mostrar sua indignação com a situação política do nosso país. As análises sempre nos apontam uma polarização política: como se nessa discussão existissem apenas dois lados, como se só existisse um muro pra ficar em cima. A mídia faz acreditar que ou se apoia o impeachment (ou o golpe) ou se defende a democracia (ou o governo corrupto do pt); sendo que na verdade o buraco é muito mais embaixo e não só dois lados nesse debate.

Numa análise bem superficial, dá pra ver pelo menos dois antagonismos: de um lado os que defendem a saída de Dilma da presidência, uma vez que com os casos denunciados de corrupção a sua permanência não se sustenta; e, do outro lado desse cabo de guerra, estão os que defendem que as acusações é que não se sustentam e que ainda não há provas concretas contra ela e que ela precisa antes ser condenada para depois ser impedida. Numa outra polarização, estão os que acusam a mídia e o judiciário de serem parciais e tentarem manipular a opinião pública a fim de tirar do governo o partido que ganhou as eleições; e, nessa disputa, os contrários apontam que a justiça está apenas fazendo o seu trabalho (“agora os corruptos do pt, depois todos os outros”).

Me parece que essas polarizações só empobrecem o debate; me parece muito ingênuo acreditar em soluções tão simples pra um momento tão delicado como o que estamos vivendo. Mas, mesmo assim, na minha superficialidade e assumida ingenuidade, levanto alguns questionamentos.

As principais acusações contra o governo vieram da Operação Lava Jato (ou Lava-Jato ou Lavajato?); a principal delas vieram de um senador (ex-)petista, que, depois de ser pego, acusou todo mundo do governo no seu acordo de delação premiada. Eu questiono se não poderia existir interesses do senador em fazer essas acusações, sem poder prová-las, apenas para denigrir o governo. Ou, pior: e se lhe pagaram propina para que ele fizesse essas acusações a fim de beneficiar alguém – afinal, ele já foi preso por corrupção, não é?

E muito foi discutido sobre a quantidade de pessoas que foram às ruas. Os organizadores do protesto verde-amarelo e a mídia disseram que esse foi maior; os organizadores das manifestações vermelhas disseram que seu protesto foi mais representativo. Cada um dos dois grupos dizendo representar a vontade do povo. Concordo com o argumento de que, se fosse pra disputar em número de pessoas, deveria prevalecer o resultado das urnas em 2014.

Mas, por outro lado, quem deveria ser responsável em destituir um presidente (ou qualquer cargo eletivo) deveria ser os responsáveis por elegê-lo; assim, caberia ao povo decidir sua saída, e não o legislativo. Ou seja, o passo final do rito do impeachment deveria ser um referendo popular convocado para destituir ou não a pessoa eleita. Só que, antes, a pessoa precisaria, com direito a defesa, ser condenada judicialmente. Porque não faz sentido destituir uma pessoa eleita porque ela não agrada quem não votou nela.

Só que o debate não se encerra nesta questão, tem muita lenha pra ser jogada nessa fogueira ainda.

31 outubro 2015

Sobre ENEM e violência contra mulher e ser babaca

Há poucos dias 7milhões de brasileiros fizeram a prova do ENEM. No sábado teve Marx e Beauvoir; no domingo, uma redação sobre violência contra a mulher. E, por isso, as pessoas entraram em frenesi porque a prova era esquerdista e doutrinadora marxista e tudo que há de ruim no mundo.

No facebook só se falou disso – o que é excelente! Se por um lado teve gente que comemorou que essas coisas estejam sendo colocadas em debate, teve gente que disse que a prova não era imparcial, que 31% das questões eram de esquerda, que é o PT, que não existe violência contra mulher – existe violência. E tantas outras babaquices.

Antes de qualquer coisa, é preciso ter em mente que simplesmente não existem Ciências Humanas sem ideologia; não existe essa tal de imparcialidade que os críticos da prova almejam. No extremo, não existe ciência sem ideologia. Já li vários estudos científicos defendendo que o homem precisa de alimentação a base de carne e vários estudos defendendo justamente o contrário; vira e mexe aparece na mídia estudos dizendo que ovo é vilão ou mocinho – isso só pra falar de alimentação.

Então, quando uma pessoa vai lá e faz um estudo e diz que “a globalização gera desemprego”, ela não tá apenas dizendo a opinião dela, é sim uma afirmativa científica, que sim gera debates e estudos que digam o contrário. Quando colocaram essa questão na prova, sabiam que essa questão era “ideológica”, mas sabiam que seria ideológica se eles colocassem um autor que dissesse qualquer outra coisa.

Simone de Beauvoir disse coisas que abalaram o pensamento de sua época. E, ironicamente, a rejeição foi em grande parte não por ela defender as mulheres, mas por ser mulher. E é irônico pensar que a rejeição em relação a ela, cinquenta anos depois, ainda é pelos mesmos motivos. A questão do ENEM não perguntava se era certo ou errado o que ela dizia, nem que devemos sair queimando sutiãs ou dizendo que mulheres devem ser tratadas como gente. A prova levantava a relação entre o pensamento filosófico dela e sua relevância histórica.

A prova foi tachada de esquerdista, comunista e o diabo aquático. Mas não existe relação entre ser de esquerda (ou de direita) e ser (ou não) um babaca. A redação no domingo propunha que o aluno discorresse sobre a violência contra a mulher; o aluno era convidado a pensar sobre o assunto e posicionar-se criticamente, oferecendo possíveis soluções para o problema. E isso não tem nada a ver com espectro político: a defesa dos direitos humanos é um dever de pessoas civilizadas!

As pessoas que demonizaram a prova não são pessoas de direita, são analfabetos políticos. A militância de esquerda que o Brasil precisa não é contra pessoas de direita – essas, infelizmente, conheço poucas; a militância é contra um conservadorismo ignorante que não estudou mais do que o mundo em que ele vive, incapaz de se por no lugar do outro, seja quem for.

Uma vitória dessa prova foi trazer essas questões para a discussão. Obrigatoriamente, 7milhões de brasileiros tiveram que pensar sobre violência contra a mulher; por tabela, o assunto foi trazido às rodas de discussão de outros milhões de brasileiros. Debater o assunto não é nem de longe suficiente para resolver o problema, mas faz com que as pessoas reflitam e se posicionem e comecem a mudança. Quem sabe daqui alguns séculos mulheres não sejam mortas simplesmente por serem mulheres.

02 outubro 2015

A academia e a educação básica

Ter estudado Letras enquanto trabalhava numa escola pública me fez enxergar o quanto o que é estudado na faculdade está longe do que de fato se trabalha em sala de aula. Por muitos anos a concepção de ensino de língua materna na escola nada teve a ver com o objeto de estudos da linguagem na academia. Enquanto a academia tentava entender como a língua funciona, tanto em seus aspectos internos quanto em termos de sociedade, a escola passava o século inteiro preocupada em ensinar a ler e escrever.

E justamente por ter se adentrado em questões muito mais profundas do que o lugar em que a escola parou, a academia está discutindo questões que parecem irrelevantes pra sala de aula. E por não ter acompanhado a discussão (que já tem quase um século), a educação básica está muito longe de absorver o que a academia tem produzido. Aí, agora que a escola resolveu ir um pouco além de apenas ensinar a ler e escrever, os estudos acadêmicos parecem não ajudar em nada – e de fato não ajudam.

A academia deixou de se preocupar com a educação básica; se a escola não está interessada em ir além do bê-á-bá, é inócuo despender esforços pra tentar pensar e repensar quais são os conteúdos necessários em cada fase do aprendizado. De tempos em tempos, surgem algumas discussões; em 1997, por exemplo, o governo federal estabeleceu parâmetros curriculares, a fim de estabelecer quais seriam os conceitos que deveriam ser trabalhados em sala de aula. E, pouco antes disso, em 1996, com a LDB, a educação se universalizou e a escola passou a não ser mais exclusividade da elite econômica, com isso vieram outras dificuldades que não estavam nos manuais produzidos até então. E, hoje, quase vinte anos depois, a escola ainda está, como antes, muito mais preocupada em ensinar a ler e escrever do que discutir o que deve ser corrigido nos PCNs. Como os parâmetros não chegaram a ser aplicados, a gente não consegue medir o quanto não são eficientes.

E isso acontece principalmente porque as pessoas que pesquisam na academia não são as mesmas pessoas que estão em sala de aula; é muito mais difícil pesquisar sobre uma realidade que você não vive todo dia; da mesma forma que a realidade não vai ser pesquisada se as pessoas que a vivem não se envolvem com a pesquisa. É preciso questionar o que a academia tem dito com base no que acontece de fato nas salas; e isso não quer dizer que a teoria está errada e por isso deve ser jogada fora, mas que ela precisa acolher a diversidade de alunos e se adaptar a outras realidades. Se na prática a teoria não funciona, a teoria precisa se adaptar.

A fim de se resolver isso, os professores da educação básica precisariam fazer parte da academia e vice-versa. A academia precisa chegar na sala de aula. Se algum político tivesse a preocupação de fazer alguma coisa pela educação, o primeiro passo seria investir em plano de carreira e formação continuada. Da mesma forma que acredito que só consegue fazer alguma diferença pela educação o professor que está constantemente se questionando e adaptando sua prática.

01 outubro 2015

Livre Mercado Uber Alles

Pra mim não faz sentido proibir o tal do Uber. Caso eu ache o ensino público ruim, eu tenho o direito de abrir uma escola behaviorista que prega que a vida, o universo e tudo mais tenham sido criados em seis dias; mas, se eu achar que o serviço de transporte da minha cidade é ruim, fodse, eu não tenho o direito de abrir uma empresa de transporte que seja boa.

Dentro da lógica de mercado do nosso país, a gente pode explorar alguns serviços livremente. Mas outros ficam “monopolizados” pelo governo; é o caso da exploração de petróleo, por exemplo. Já outros serviços são concessionados; isso quer dizer que o governo não é capaz de oferecer serviços de qualidade naquela área e prefere deixar que empresas privadas especializadas lucrem com aquela atividade – é o caso das estradas pedagiadas e dos canais de tv e de rádio.

E, por algum motivo que desconheço, os táxis e o transporte público em geral é setorizado e concessionado pra sempre. Por um lado, entendo que não seja interessante pro interesse do país que seja liberado pra que quem quiser a abertura de estradas privadas – tipo, uma do lado da outra disputando entre si os trechos onde tem mais movimento; e entendo que tem que haver algum tipo de controle sobre quem controla os canais de tv, pra que não haja mil canais interferindo no sinal um do outro – embora não ache que as licenças devam ser vitalícias como são e livres pra fazer o que quiserem. Mas, por outro lado, acho meio absurdo que um serviço tão essencial como o transporte seja monopolizado. Até entenderia se fosse monopolizado pelo estado; mas não me parece fazer sentido ser monopolizado por grupos de empresas concessionadas.

Do mesmo jeito que acho que, embora dever do estado, a escola não deve ser exclusividade do estado, acho que o estado pode, sim, concessionar os táxis pra certas empresas, mas subsidiando para garantir qualidade e preço baixo; assim, a galera do Uber ia ter dificuldades para conseguir fazer um serviço sofisticado e barato; o usuário ia ter que escolher entre ter um serviço mais requintado porém caro ou um serviço mais simples só que barato. Ou liberar de uma vez pra iniciativa privada!

(semana passada eu tava aqui defendendo a esquerda e sei lá o que mais e agora tô aqui falando de livre mercado e liberalismo e mises e)

Acho que o governo só precisa fazer uns ajustes pra que o Uber se encaixe dentro dos moldes das empresas brasileiras, que cumpra seus deveres e que vendam seu produto como qualquer outro fornecedor de serviços.

17 setembro 2015

Qual Esquerda, afinal?

As sociedades humanas sempre foram construídas sobre relações de poder; sempre alguém mandava e outro alguém obedecia. Sempre foi assim. Não arrisco dizer se sempre vai ser. Não arrisco dizer se é algo inato – acho que não é.

Se no começo da humanidade essa relação era de força, logo passou a ser disputada politicamente. Como acontece em comunidades de vários animais, a disputa acontecia no braço: o mais forte sobrevive e domina. Muito provavelmente desde aí surgiram os primeiros passos do machismo: homens têm a força e mandam; as mulheres obedecem. E não muito depois, como acontece com os gorilas (vi num documentário no NatGeo), um macho decide ser submisso a um macho alfa e deixar que ele comande – para evitar a fadiga.

Com o passar dos séculos, as relações de poder começaram a se sofisticar. Era o poderoso aquele que tinha em sua jurisdição uma plantação maior, por exemplo. Depois, povos passaram a se achar mais que os outros simplesmente por nascerem aqui ou ali, com sangue frio ou azul; alguns povos passaram a escravizar outros.

O mundo “evoluiu” e esse sistema de hierarquização de poderes foi naturalmente abraçado pelo capitalismo. O poder agora é simbolizado pelo dinheiro. E aqueles que acumulam dinheiro e exploram os que não tem é que são os realmente poderosos. As outras relações de poder foram facilmente absorvidas por esse sistema, no qual é bastante produtivo que algumas pessoas sejam naturalmente deixadas abaixo na pirâmide – ou, pior, às margens da pirâmide.

E a religião e as escolas estão aí para reforçar essas relações de poder e mantê-las o mais estável possível.

Algumas das relações de poder são impostas pelo sistema. Ter dinheiro é vantagem dentro desse sistema; assim, quem tem mais dinheiro manda mais: quanto mais dinheiro mais poder, quanto menos dinheiro menos poder, mais submissão. Nascer em berço de ouro faz de você naturalmente poderoso. Ainda, dentro desse sistema, ser detentor do conhecimento é uma vantagem; estudar é uma arma até bem pouco tempo negada à maioria da população. E não é à toa que as escolas não são tão eficientes quanto bancos dentro desse sistema.

Por razões historicamente facilmente traçáveis, ser branco do sexo masculino heterossexual cisgênero e humano é vantagem nesse sistema. Consequentemente, ser negro, ser mulher, ser gay ou lésbica é ser obrigado a fazer parte daqueles que obedecem; mas, como resultado de lutas históricas, essas pessoas passaram a ter mais direitos, embora, claro, essa luta ainda precise avançar muito – mas, de qualquer forma, já é possível encontrar (ainda que excepcionalmente) membros desses grupos sendo líderes de alguma forma.

As pessoas trans, por sua vez, por imposição desse sistema ficam às margens desse sistema – é quase como se elas fossem não-pessoas; as exceções de pessoas trans com algum tipo de poder são ainda mais raras (pior ainda se fizerem parte de outros grupos minoritários) por isso que as taxas de homicídios (e suicídios) dentro desses grupos são assustadoramente mais altas que nos demais grupos.

E fora de todo o sistema estão todos os seres não-humanos; o sistema não admite direitos para esses seres – na lógica do sistema, esses seres existem para serem explorados; exigir direitos animais parece utópico dentro desse sistema.

Só que o sistema é foda. Tudo é tão natural e fluído que a gente nem percebe todas as opressões das quais somos vítimas e algozes todos os dias.

Nesse sentido, entendo que ser de esquerda é reconhecer os privilégios e passar a negá-los.

Pra mim, me parece incoerente lutar contra a opressão do grande capital sobre os trabalhadores e não pensar na opressão do marido sobre a esposa; me parece incoerente que a revolução seja encabeçada por pessoas brancas; me parece incoerente que as pessoas trans sejam colocadas às margens até do movimento revolucionário; me parece incoerente que lutemos contra o fim da exploração enquanto colocamos o homem no “topo da cadeia alimentar” e fazemos todo e qualquer tipo de atrocidade contra a natureza.

E se o objetivo é derrubar o sistema, um bom começo é quebrar os paradigmas tão bem solidificados que ele construiu sob a gente.

10 setembro 2015

Esquerda x esquerda

Mas a questão decisiva é qual sistema estamos querendo derrubar – ou, ainda, que sistema queremos colocar no lugar? Na França Napoleônica, ser de esquerda era se opor à monarquia; no socialismo do século XX, estar à esquerda era ser contra o capitalismo. Só que já nessa época já se discutia o que ia ser colocado no lugar; ou, antes disso, como faremos pra derrubar o grande capital.

Meus amigos de facebook são, em sua maioria, de esquerda; mas isso não quer dizer que todos têm a mesma concepção de esquerda; nem que eles concordem na maioria de seus pontos. Pode-se dizer que todos têm como ponto comum que o lucro não deveria estar sobre o interesse coletivo. Mas acho difícil dizer que todos eles são anticapitalistas – assim, com todas as letras.

Mesmo aqueles que são contra o Capital – aqueles que leram Marx e tal… mesmo eles não tem em comum o modus operandi da derrubada de poder. Alguns acreditam na ruptura, na revolta armada; outros acreditam numa transição, longa e dolorida, no dia a dia, até que o sistema se esvaia. E, mesmo assim, depois que o capitalismo estiver derrubado, não há um consenso sobre o que deve existir no lugar; socialismo, comunismo, anarquia, anarco-socialismo, anarco-comunismo, anarco-cristianismo, anarco-capitalismo (?), et cetera.

E, além disso, se a esquerda são os opositores do sistema, convém definir o que é o sistema. Ora é o Capital o grande mal? mas e as outras opressões? O capitalismo divide as pessoas entre as que detêm o poder e as que são exploradas (e ainda as marginalizadas, que nem sequer têm acesso ao sistema). Há outros sistemas de opressão paralelos, subjacentes ou permeados ao capitalismo; as coisas ficam mais fáceis para quem é humano, rico, do sexo masculino, branco, heterossexual, cisgênero, letrado, sem deficiências físicas ou mentais, e/ou detentor de algum outro privilégio que não mencionei ou sequer sei que existe.

Há esquerdas que acreditam que o capitalismo é o mal maior e que se ele deixar de existir todos os outros problemas somem; ou aqueles que acreditam que os problemas devem ser tratados um de cada vez, a começar pelo capitalismo. E há a esquerda que acredita que todas as formas de opressão devem ser combatidas, uma a uma. E todos os nuances possíveis de o que é considerado uma pauta de luta.

Tentar definir tudo isso mostra que, sem dúvida, o rótulo de “esquerda x direita” é bastante vago. O que não significa de maneira alguma que devamos deixar de usá-lo. Embora não haja uma unidade dentre os participantes desse grande balaio da esquerda, há ainda a clara distinção entre os que acreditam no sistema e os que lutam para derrubá-lo.

03 setembro 2015

À esquerda ou à direita

Em qualquer debate político, acaba sempre vindo à tona a discussão de esquerda versus direita. Muito se fala sobre isso e muito se pergunta se ainda faz sentido em falar disso; e sobre isso há quem diga que quem pergunta se ainda existe esquerda só pode ser alguém de direita.

Historicamente, chamou-se de esquerda aqueles contrários ao sistema vigente; e de direita aqueles que o defendiam. O termo surgiu na França em relação aos deputados que apoiavam a monarquia ou queriam instaurar a república. E, com o passar dos anos, os termos passaram a indicar quem era partidário do sistema vigente versus quem era contra.

Hoje, para o bem e / ou para o mal, vivemos no sistema capitalista. O que, em 140 caracteres, significa que podemos trocar nossa força de trabalho por bens de consumo e bem-estar. Em tese, quem produz mais (em termos materiais e simbólicos) adquire poder para ter mais.

Mas esse sistema, claro – como, imagino, qualquer outro – tem problemas. E a maneira de encarar esses problemas é que define se estamos mais à esquerda ou mais à direita. Em miúdos, a esquerda diz que esse sistema é ruim e precisa ser substituído. A direita diz que os problemas são, na verdade, do ser humano e que não tem nada errado com o modelo. Aí tem a galera de centro, que admite um problema ou outro, mas diz que o sistema não é tão ruim assim – e vice-versa.

Na lógica do sistema capitalista, todos aqueles que obtiverem sucesso com seu trabalho poderão acumular bens – ou, em outras palavras, ficarão ricos. Só que para que alguém possa prosperar com o capitalismo alguém tem que ter que vender seu trabalho recebendo menos do que ele vale. Para que alguém possa prosperar no capitalismo, alguém, necessariamente, precisa sofrer, ser pobre – nem que seja num distante país lá do outro lado do mundo.

A direita encara isso como um mal necessário. O capitalismo permite que pessoas possam passar do grupo dos pobres para o grupo dos ricos – e o contrário também. O sistema beneficia aqueles que se esforçam para criar e aproveitar todas as oportunidades no seu caminho. Há casos de pessoas pobres que passaram a ser ricas; e há casos de pessoas ricas que ficaram pobres. Segundo a direita, é graças a essa desigualdade entre pobres e ricos que a humanidade evolui; é para ficar rico que as pessoas inventam e acordam cedo e movem as roldanas do mundo.

A esquerda, por sua vez, acredita que essa desigualdade entre as pessoas é inaceitável. A esquerda foca no fato de que é mais fácil prosperar dentro do capitalismo se você tem dinheiro. No mundo capitalista, dinheiro faz dinheiro; trabalho, não necessariamente.

E a galera do centro acha que uma desigualdadezinha é necessária (pra incentivar uma competição), mas que não precisa ninguém morrer de fome. O centro acredita que o capitalismo só precisa de umas reformas.

Isso resume (mal e porcamente) o que entendo do espectro direita x esquerda em relação ao capitalismo – mas nem de longe encerra a discussão. No mundo real, o buraco é sempre mais embaixo.