o sim e o não, o alfa e o ômega, o homem e a mulher, a langue e a parole, o yin e o yang.

17 setembro 2015

Qual Esquerda, afinal?

As sociedades humanas sempre foram construídas sobre relações de poder; sempre alguém mandava e outro alguém obedecia. Sempre foi assim. Não arrisco dizer se sempre vai ser. Não arrisco dizer se é algo inato – acho que não é.

Se no começo da humanidade essa relação era de força, logo passou a ser disputada politicamente. Como acontece em comunidades de vários animais, a disputa acontecia no braço: o mais forte sobrevive e domina. Muito provavelmente desde aí surgiram os primeiros passos do machismo: homens têm a força e mandam; as mulheres obedecem. E não muito depois, como acontece com os gorilas (vi num documentário no NatGeo), um macho decide ser submisso a um macho alfa e deixar que ele comande – para evitar a fadiga.

Com o passar dos séculos, as relações de poder começaram a se sofisticar. Era o poderoso aquele que tinha em sua jurisdição uma plantação maior, por exemplo. Depois, povos passaram a se achar mais que os outros simplesmente por nascerem aqui ou ali, com sangue frio ou azul; alguns povos passaram a escravizar outros.

O mundo “evoluiu” e esse sistema de hierarquização de poderes foi naturalmente abraçado pelo capitalismo. O poder agora é simbolizado pelo dinheiro. E aqueles que acumulam dinheiro e exploram os que não tem é que são os realmente poderosos. As outras relações de poder foram facilmente absorvidas por esse sistema, no qual é bastante produtivo que algumas pessoas sejam naturalmente deixadas abaixo na pirâmide – ou, pior, às margens da pirâmide.

E a religião e as escolas estão aí para reforçar essas relações de poder e mantê-las o mais estável possível.

Algumas das relações de poder são impostas pelo sistema. Ter dinheiro é vantagem dentro desse sistema; assim, quem tem mais dinheiro manda mais: quanto mais dinheiro mais poder, quanto menos dinheiro menos poder, mais submissão. Nascer em berço de ouro faz de você naturalmente poderoso. Ainda, dentro desse sistema, ser detentor do conhecimento é uma vantagem; estudar é uma arma até bem pouco tempo negada à maioria da população. E não é à toa que as escolas não são tão eficientes quanto bancos dentro desse sistema.

Por razões historicamente facilmente traçáveis, ser branco do sexo masculino heterossexual cisgênero e humano é vantagem nesse sistema. Consequentemente, ser negro, ser mulher, ser gay ou lésbica é ser obrigado a fazer parte daqueles que obedecem; mas, como resultado de lutas históricas, essas pessoas passaram a ter mais direitos, embora, claro, essa luta ainda precise avançar muito – mas, de qualquer forma, já é possível encontrar (ainda que excepcionalmente) membros desses grupos sendo líderes de alguma forma.

As pessoas trans, por sua vez, por imposição desse sistema ficam às margens desse sistema – é quase como se elas fossem não-pessoas; as exceções de pessoas trans com algum tipo de poder são ainda mais raras (pior ainda se fizerem parte de outros grupos minoritários) por isso que as taxas de homicídios (e suicídios) dentro desses grupos são assustadoramente mais altas que nos demais grupos.

E fora de todo o sistema estão todos os seres não-humanos; o sistema não admite direitos para esses seres – na lógica do sistema, esses seres existem para serem explorados; exigir direitos animais parece utópico dentro desse sistema.

Só que o sistema é foda. Tudo é tão natural e fluído que a gente nem percebe todas as opressões das quais somos vítimas e algozes todos os dias.

Nesse sentido, entendo que ser de esquerda é reconhecer os privilégios e passar a negá-los.

Pra mim, me parece incoerente lutar contra a opressão do grande capital sobre os trabalhadores e não pensar na opressão do marido sobre a esposa; me parece incoerente que a revolução seja encabeçada por pessoas brancas; me parece incoerente que as pessoas trans sejam colocadas às margens até do movimento revolucionário; me parece incoerente que lutemos contra o fim da exploração enquanto colocamos o homem no “topo da cadeia alimentar” e fazemos todo e qualquer tipo de atrocidade contra a natureza.

E se o objetivo é derrubar o sistema, um bom começo é quebrar os paradigmas tão bem solidificados que ele construiu sob a gente.

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