Há poucos
dias 7milhões de brasileiros fizeram a prova do ENEM. No sábado
teve Marx e Beauvoir; no domingo, uma redação sobre violência
contra a mulher. E, por isso, as pessoas entraram em frenesi porque a
prova era esquerdista e doutrinadora marxista e tudo que há de ruim
no mundo.
No
facebook só se falou disso – o que é excelente! Se por um lado
teve gente que comemorou que essas coisas estejam sendo colocadas em
debate, teve gente que disse que a prova não era imparcial, que 31%
das questões eram de esquerda, que é o PT, que não existe
violência contra mulher – existe violência. E tantas outras
babaquices.
Antes de
qualquer coisa, é preciso ter em mente que simplesmente não existem
Ciências Humanas sem ideologia; não existe essa tal de
imparcialidade que os críticos da prova almejam. No extremo, não
existe ciência sem ideologia. Já li vários estudos científicos
defendendo que o homem precisa de alimentação a base de
carne e vários estudos defendendo justamente o contrário; vira e
mexe aparece na mídia estudos dizendo que ovo é vilão ou mocinho –
isso só pra falar de alimentação.
Então,
quando uma pessoa vai lá e faz um estudo e diz que “a globalização
gera desemprego”, ela não tá apenas dizendo a opinião dela, é
sim uma afirmativa científica, que sim gera debates e estudos que
digam o contrário. Quando colocaram essa questão na prova, sabiam
que essa questão era “ideológica”, mas sabiam que seria
ideológica se eles colocassem um autor que dissesse qualquer outra
coisa.
Simone de
Beauvoir disse coisas que abalaram o pensamento de sua época. E,
ironicamente, a rejeição foi em grande parte não por ela defender
as mulheres, mas por ser mulher. E é irônico pensar que a
rejeição em relação a ela, cinquenta anos depois, ainda é
pelos mesmos motivos. A questão do ENEM não perguntava se era certo
ou errado o que ela dizia, nem que devemos sair queimando sutiãs ou
dizendo que mulheres devem ser tratadas como gente. A prova levantava
a relação entre o pensamento filosófico dela e sua relevância
histórica.
A prova
foi tachada de esquerdista, comunista e o diabo aquático. Mas não
existe relação entre ser de esquerda (ou de direita) e ser (ou não)
um babaca. A redação no domingo propunha que o aluno discorresse
sobre a violência contra a mulher; o aluno era convidado a pensar
sobre o assunto e posicionar-se criticamente, oferecendo possíveis
soluções para o problema. E isso não tem nada a ver com
espectro político: a defesa dos direitos humanos é um dever
de pessoas civilizadas!
As pessoas
que demonizaram a prova não são pessoas de direita, são
analfabetos políticos. A militância de esquerda que o Brasil
precisa não é contra pessoas de direita – essas, infelizmente,
conheço poucas; a militância é contra um conservadorismo ignorante
que não estudou mais do que o mundo em que ele vive, incapaz de se
por no lugar do outro, seja quem for.
Uma
vitória dessa prova foi trazer essas questões para a discussão.
Obrigatoriamente, 7milhões de brasileiros tiveram que pensar sobre
violência contra a mulher; por tabela, o assunto foi trazido às
rodas de discussão de outros milhões de brasileiros. Debater o
assunto não é nem de longe suficiente para resolver o problema, mas
faz com que as pessoas reflitam e se posicionem e comecem a mudança.
Quem sabe daqui alguns séculos mulheres não sejam mortas
simplesmente por serem mulheres.
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